No início de março, o secretário do Tesouro dos EUA expôs visão estruturada da agenda América Primeiro do presidente Trump. Utilizar política tarifária para redesenhar as relações econômicas internacionais do país é um de seus pilares críticos. Em sua exposição, usou conceitos desenvolvidos mais formalmente pelo chefe do Conselho de Assessores Econômicos do Gabinete Executivo da Presidência.1 Nesse contexto, é possível agora examinar os principais objetivos, as hipóteses subjacentes e avaliar o provável resultado de tais ações.
Reformular o sistema de comércio global de forma a pôr a indústria dos EUA em um plano mais equânime frente ao resto do mundo é o principal objetivo de uma opção beligerante de política industrial. Para alcançar isso, alega-se que o governo deve erradicar a causa dos desequilíbrios econômicos, que seria a perene supervalorização do dólar americano, um efeito da sempre elevada demanda por uma moeda de reserva no mundo. Maiores tarifas de importação seriam um instrumento-chave para resolver o problema com efeitos colaterais mínimos, com a vantagem adicional de prover receitas fiscais que ajudariam a reduzir o déficit público.
Para começar, a postulação de que o dólar americano é cronicamente supervalorizado devido ao seu papel de principal moeda internacional é falha. Vê-se que a taxa de câmbio segue ciclos de subvalorização e supervalorização na América como em qualquer outra economia. Não há, então, excepcionalismo algum. Embora ela esteja agora 20% acima do valor justo, segundo estimativas baseadas em paridade do poder de compra (Gráfico I), vagou pelo território da subvalorização por 12 anos, do início de 2003 até 2015 e, antes disso, durante outro grande período, de 1987 a 2000, quando esteve bastante abaixo do nível sugerido por fundamentos. Quanto à libra esterlina, que foi a moeda de reserva mundial até a Primeira Guerra Mundial, a história tem sido oposta: ela agora está 9% abaixo de seu equilíbrio teórico de longo prazo, ainda dolorosamente se recuperando de profunda depreciação após o malfadado Brexit em 2016. Daí a conclusão de que decisões soberanas das nações fazem considerável diferença no que toca a temas cambiais.
Ser a moeda de reserva global não é maldição. Ao contrário, há ampla literatura sobre o “privilégio exorbitante” conferido ao dólar americano por ser a principal unidade na qual o mundo não apenas denomina preços de ativos, mas também liquida transações financeiras e de comércio internacionais. Porque indivíduos e empresas na América podem pagar por bens e serviços importados de qualquer canto do planeta com o dinheiro que seu banco central cria, há espaço para substancial excesso de gastos sobre a produção doméstica da economia (ou seja, para um grande déficit em conta corrente) sem que necessariamente haja crise cambial. Nesse contexto, Washington tem se permitido políticas econômicas expansionistas já há bastante tempo, em especial por meio de prodigalidade fiscal, que é notória promotora de supervalorização cambial e desequilíbrios nas contas externas. Nessas circunstâncias, quão eficazes são as tarifas de importação para pôr a indústria dos EUA em um plano mais equânime frente aos demais países?2
Os proponentes de uma opção agressiva de política industrial nos EUA alegam que protecionismo beneficia o país, pois melhora os termos de troca. Sendo uma economia grande, a América pode exercer pressão baixista sobre os preços de bens e serviços importados, depreciando a moeda das nações exportadoras ou forçando-as a baixar os preços de seus produtos (para não correr o risco de perder um mercado tão crítico), ou uma combinação de ambos. Ademais, aumenta as receitas fiscais. Infelizmente, é uma interpretação errônea da teoria de tarifação ótima de importações, pois viola duas hipóteses subjacentes fundamentais: custos de transação são insignificantes (portanto, há informação perfeita) e outras nações não retaliam com gravames próprios.
A execução do programa América Primeiro pelo presidente Trump tem sido a antítese de uma implementação ótima: inconstante, com muito vai-e-vem, o que torna mais difícil distinguir ruído de sinal. Destarte, os custos de produção sobem devido a incertezas e erros induzidos por diretrizes confusas. Ademais, a hipótese de “tudo o mais constante” não se sustenta, pois outras nações estão reagindo ao protecionismo dos EUA. Por fim, recentes estimativas independentes sugerem fortemente que o aumento de receitas fiscais advindo de maiores tarifas será pequena fração da estimativa oficial, devido a efeitos dinâmicos adversos sobre o crescimento econômico.3 Previsivelmente, sobem as expectativas de inflação enquanto a atividade econômica arria (Gráfico II).
Desafortunadamente, não há entrave relevante à execução do programa América Primeiro até que os efeitos econômicos surjam e cobrem seu preço político. Em termos calendários, isso implica um período até as eleições de meio de mandato em novembro de 2026. Até lá, é muito provável que Washington anuncie uma profusão de ações protecionistas visando em especial nações que têm grandes superávits comerciais com os EUA (Gráfico III). A contínua erosão de credibilidade da maior economia do mundo como parceira confiável estimula outros países a buscar soluções pró-mercado para forjar novas alianças de investimento, comerciais e estratégicas entre si. Os mercados financeiros globais no início de 2025 precificam para eles um cenário de sucesso (Gráfico IV). Parece estar emergindo então uma nova ordem econômica internacional, propositalmente ou não, e as dores de parto são claramente audíveis.
1 Treasury Secretary Scott Bessent Remarks at the Economic Club of New York on 6-Mar-25. Disponível em https://home.treasury.gov/news/press-releases/sb0045. Ver Miran, S. (2024) “A User’s Guide to Restructuring the Global Trading System”, Hudson Bay Capital, November.
2 A referência clássica é Gordon, R. J. (1987). “U.S. Fiscal Deficits and the World Imbalance of Payments”. Brookings Papers on Economic Activity, 16(1), pp. 237-44. Ver também Eichengreen, B. (2010). Exorbitant Privilege. The Rise and Fall of the Dollar and the Future of the International Monetary System, Oxford: Oxford University Press, além de Gagnon, J. E. & Sarsenbayev, M. (2021). “Fiscal and Exchange Rate Policies Drive Trade Imbalances”, Working Paper 21-4, Peterson Institute for International Economics.
3 Ver, por exemplo, “The Fiscal, Economic, and Distributional Effects of 20% Tariffs on China and 25% Tariffs on Canada and Mexico” by the Yale Budget Lab, dated 3-Mar-25. Disponível em https://budgetlab.yale.edu/research/fiscal-economic-and-distributional-effects-20-tariffs-china-and-25-tariffs-canada-and-mexico.
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