Em retrospecto, é fácil detectar os primeiros sinais de que a ordem internacional se tornara disfuncional. O colapso em 2008 da Agenda de Desenvolvimento de Doha – a rodada de negociações da Organização Mundial de Comércio que visava reduzir as barreiras ao comércio transnacional – foi um prenúncio. É claro que a Crise Financeira Global (CFG) eclodiu logo depois, mas é revelador que fracassaram todas as subsequentes tentativas de retomar as discussões em torno de temas como acesso a mercados, resolução de conflitos e tratamento diferenciado para economias menos desenvolvidas. Ao invés disso, ocorreu uma série de eventos portentosos – Brexit, Trump 1.0, pandemia, guerra na Ucrânia, crescentes tensões político-econômicas entre China e Estados Unidos, dentre outros – e uma configuração mundial totalmente nova então emergiu.
O comércio internacional de bens, serviços e renda primária atingiu pico de 76% do PIB global em 2008 (Gráfico I) e desde então vem, na melhor das hipóteses, andando de lado, ou em leve queda. Junto com outros transtornos como queda aguda do investimento estrangeiro e maior risco geopolítico, isso levou a um crescimento mais lento do PIB real per capita, cuja taxa de longo prazo é agora 26% menor que antes da CFG. Que tal desaceleração tenha ocorrido a despeito da evolução da Sociedade em Rede e do espetacular sucesso em biotecnologia, tecnologia de informação e áreas similares, é bastante revelador das poderosas contracorrentes em ação. Também ajuda a moderar o otimismo acerca do impacto favorável de inovações como Inteligência Artificial (IA). Tais desenvolvimentos são excitantes, decerto, porém podem também aumentar o poder de mercado e a concentração de negócios, gerando massivo crescimento de riqueza privada e desigualdade de renda, da mesma forma que as novidades anteriores o fizeram. Nesse contexto, um dos ganhadores do Nobel em Economia de 2024, Daron Acemoglu, recentemente publicou instigante texto avaliando as grandes implicações macroeconômicas dos avanços recentes em IA.1 O que ele achou, incremento estimado entre 0,5% e 0,7% na Produtividade Total dos Fatores nos EUA em 10 anos, junto com queda da fração do trabalho na renda nacional, está longe de ser impressionante.

Nesse contexto, como se encaixa Trump 2.0 e quais são suas consequências econômicas? Francamente, é difícil distinguir ruído de sinal na agressiva retórica do presidente recém-eleito e algumas de suas proposições mais controversas são na verdade táticas de negociação para conseguir um acordo. Contudo, há a evidência do que ele fez em seu primeiro mandato e os planos bem explícitos do recentemente nomeado Secretário do Tesouro, Scott Bessent, para uma reordenação econômica global, pelo que é possível formular conjecturas razoáveis sobre as medidas que o próximo governo na América tomará.2 Das cerca de 10 grande mudanças de política e reformas em debate, duas são particularmente momentosas: tarifas de importação mais altas e repressão à imigração ilegal (que inclui deportação em proporção inédita de pessoas que vieram ilegalmente ou que ultrapassaram o prazo de validade de seus vistos). Neste estágio, exercícios econométricos instigantes visando estimar seus efeitos sobre o nível de atividade nos EUA sugerem fortemente que mesmo uma implementação comedida, ou seja, não radical das propostas deverá resultar em breve melhora, seguida de impactos líquidos negativos de médio prazo em inflação, resultado fiscal e, por fim, crescimento do PIB, os quais mais do que compensam o boom inicial.
Quanto aos efeitos alhures, eles variariam consideravelmente. Embora nenhuma geografia se beneficie das práticas de Trump, algumas deverão sofrer bem mais que outras (Gráfico II).3 A diferença percentual negativa estimada do nível do produto interno bruto em 2029 versus um cenário status quo é maior na China e na região Ásia-Pacífico, as maiores ganhadoras na era de ouro da globalização. De modo inverso, África e América Latina (com a possível exceção de México) parecem ser as regiões menos afetadas. Cabe admitir que essa abordagem não é inteiramente dinâmica, pois pressupõe que países afetados negativamente não reagirão às condições que se deterioram. Porque eles certamente o farão, o mais provável é que os protagonistas tentarão mitigar suas perdas, daí a perspectiva de maior erosão do multilateralismo, com nações crescentemente buscando acordos bilaterais vantajosos de investimento e comércio.
Um mundo em que Ásia-Pacífico, Europa, Oriente Médio, América Latina e África se esforçam para minorar a perda de bem-estar oriunda dos EUA mais protecionistas é ambiente no qual os protagonistas têm que se contentar com segundas ou terceiras melhores soluções. Em tais condições, a nova configuração de preços relativos-chave desafia o saber convencional. A taxa média em 10 anos do crescimento do PIB global real per capita imediatamente antes da pandemia, em 2019, foi de 2,4%. Quatro anos depois, uma anódina recuperação baixou-a para 2% e ainda assim as commodities ficaram significativamente mais caras, mesmo descontado o efeito do choque inflacionário nesse último par de anos (Gráfico III). Talvez a melhor maneira de explicar esse arcano é argumentar que atividade econômica mais fraca fala de demanda mais baixa, porém um longo período de investimento inadequado, combinado com fricções geopolíticas, causaram problemas mais sérios nas cadeias de oferta, os quais mais que compensaram a atenuação da procura.
Dado que nações africanas, latino-americanas e do Oriente Médio são usualmente exportadoras líquidas de commodities, cujos preços relativos estão aumentando, elas tendem a ter desempenho relativamente melhor no contexto de globalização fraturada. Mas isso não é um passe livre para políticas domésticas ineptas. Nesse contexto, a maior economia da América Latina provê exemplo revelador. A incapacidade crônica do governo Lula em reduzir o déficit fiscal catapultou os juros no Brasil para níveis altíssimos (Gráfico IV), ameaçando assim sufocar o investimento e o crescimento econômico.
1 Acemoglu, D. (2024). “The Simple Macroeconomics of AI”. Economic Policy Paper, Massachusetts Institute of Technology, com data de 5 de abril.
2 “Scott Bessent Sees a Coming ‘Global Economic Reordering.’ He Wants to Be Part of It”. Disponível para assinantes em https://www.wsj.com/politics/policy/scott-bessent-sees-a-coming-global-economic-reordering-he-wants-to-be-part-of-it-533d6e71.
3 Oxford Economics (2024). “US Elections Primer”, com data de 21 de outubro.
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