Nas rarefeitas alturas da econometria, ocorre quebra estrutural em uma série temporal quando mudam sua média e/ou outros parâmetros do processo que gera os dados.1 Em linguagem comum, trata-se de ocorrência que resulta de mudança nos fundamentos, que pode ser grande ou pequena, gradual ou abrupta. Decerto ainda não há consenso, eis que uma montanha de testes estatísticos de hipóteses está sendo feita, mas a queda acentuada e o posterior recrudescimento das taxas de juro reais de longo prazo em algumas economias avançadas são sérios candidatos a ser um desses eventos (Gráfico I).
Fontes: Bloomberg, IpeaData, Tendências Consultoria, Banco Central do Brasil e Pátria Research.
A Crise Financeira Global (CFG) de 2008-9, o taper tantrum de política monetária nos EUA em 2013-14 e a pandemia de 2020-21 foram choques transitórios adversos que por fim se esvaíram. Contudo, o modo com que América e Europa reagiram a eles, bem como seu desempenho posterior - recuperação constrangedoramente lenta em meio a pressões inflacionárias crescentes - sugere fortemente que ocorreu alteração fundamental nos parâmetros, de tal sorte que as taxas de juros de longo prazo descontada a inflação se deslocaram para cima. De fato, a evidência que suporta essa hipótese nos EUA é bem convincente, embora a escala e as razões que escoram a mudança ainda sejam discutíveis. Portanto, se um fator crítico no processo de alocação de portfólio e investimento exibe instabilidade nessas geografias desenvolvidas, inferências baseadas em considerações pretéritas sobre crescimento econômico, inflação, variações cambiais e retorno de ativos, para citar apenas alguns tópicos relacionados, são agora inconsistentes com o novo ambiente.
Mas será essa instabilidade um fenômeno global? Há base racional para assumir que uma transição para taxas reais de juros mais altas também ocorre em outras geografias mais integradas com os EUA, embora a escassez de séries históricas confiáveis e comparáveis justifique cautela na interpretação dos resultados. Na América Latina, por exemplo, o elevado volume de fluxos comerciais e financeiros entre a América e o México faz com que a correlação entre eles seja da mesma ordem de grandeza da Europa (Gráfico II). Por outro lado, há robusta correlação negativa entre o Japão, uma nação desenvolvida, e a maior economia mundial, o que sugere ausência de qualquer quebra estrutural naquela economia do Extremo Oriente. Na verdade, desde 2015 o mercado japonês parece estar preso em um universo de rendimentos negativos que nem os ruídos inflacionários pós-COVID-19 lograram mudar.
Não há, então, um script único para uma possível transição para um ambiente de taxas reais de juros de longo prazo mais altas e a maioria dos países deve estar entre as duas situações extremas de alta conexão com os EUA, que aumenta aquela probabilidade, e correlação negativa, que a elimina. Isso posto, é instrutivo avaliar os últimos eventos na maior economia latino-americana, Brasil.
O rendimento real em títulos do governo de 10 anos está em uma montanha-russa desde 2015 (Gráfico III). Nesse ano, uma letal combinação de escândalos de corrupção e políticas econômicas calamitosas implodiu o governo da Presidente Dilma, que foi afastada em maio de 2016 em meio a um processo de impeachment. O Vice-presidente Temer assumiu e implementou amplas reformas estabilizadoras, centradas em austeridade orçamentária, em especial a imposição de um teto para os gastos federais. Após isso Bolsonaro ganhou as eleições presidenciais de 2018 e sua coalizão governista aprovou uma abrangente reforma da Previdência Social em fins de 2019.Por conta da forte queda do risco fiscal, os juros reais de longo prazo caíram 3,3 p.p. em quatro anos, de quase 7% a.a. para 3,6%.
Curiosamente, o choque externo adverso que foi a pandemia teve pouco efeito no juro de longo prazo no Brasil. Os cortes emergenciais que derrubaram a taxa Selic em 2020 foram transitórios e o banco central já estava apertando a política monetária no primeiro trimestre de 2021, posto que a economia se recuperou da pandemia mais rápido do que se esperava e as pressões altistas de inflação recrudesceram. O rendimento real de títulos do governo de 10 anos começou a subir quando os mercados perceberam que o governo não mais promovia a agenda reformista (a coalizão majoritária arquivou projetos de lei que reformulariam o intrincado sistema tributário do país) e recorria a ardis orçamentários para gastar mais durante o ciclo eleitoral. Lula elegeu-se presidente de novo em 2022, mas o controverso histórico de finanças públicas de seu partido inflou os prêmios de risco de tal modo que nem a aprovação da reforma tributária e de novo marco fiscal em 2023 dissiparam os temores.
Ao contrário, a admissão pelo governo que o novo marco fiscal não gerará superávit primário para ajudar a reduzir a dívida até 2026 implica necessidade de financiamento do setor público muito maior e endividamento mais alto (Gráfico IV). Congruente com isso, a taxa real de juros de longo prazo está agora em níveis inéditos desde 2017, quase desenhando uma curva em “U”. por óbvio, isso tem cheiro de quebra estrutural, com fatores domésticos sobrelevando eventos que ocorrem na América ou Europa. No que toca às principais consequências, na reunião do Copom de 19 de junho o banco central interrompeu o ciclo de afrouxamento monetário, citando “expectativas desancoradas” (típico efeito colateral de instabilidade orçamentária), o dispêndio com investimentos cai e a taxa de câmbio, que já estava subvalorizada segundo estimativas de paridade de poder de compra, desvalorizou mais 9% frente ao dólar dos EUA neste ano.
Ocorre que instabilidade fiscal não é maldição, nem destino; na verdade, resulta de mau governo. Contudo, é sempre possível corrigir estratégias. No caso brasileiro, o próprio arcabouço fiscal fornece o mecanismo para restaurar a credibilidade orçamentária: desacelerar os gastos públicos. Ao fim e ao cabo é uma difícil decisão política que desafia frontalmente os pilares do populismo. Estará Lula à altura disso?
1 Para uma revisão abrangente desse tema, ver Rossi, B. (2021). “Forecasting in the presence of instabilities: How do we know whether models predict well and how to improve them”. Economics Working Paper Series #1711, Universitat Pompeu Fabra, julho.
2 Kliesen, K. L. (2024)., “Has the U.S. Economy Transitioned to a Higher Long-Run Real Interest Rate Regime?” The Federal Reserve Bank of St. Louis, datado 07-Mar.
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